A liberdade que oprime
Escrito por: Alexandre Coslei
Fonte: Observatório da Imprensa
Fonte: Observatório da Imprensa
Jornalismo é a vocação irreprimível dos que são engajados com a verdade e defendem os valores democráticos
Enganam-se os que creem que só quem é livre desfruta da felicidade: os
idiotas caminham felizes, justamente por serem prisioneiros da
ignorância.
Nasci, cresci e me tornei adulto durante os governos militares. Na
década de 1970, eu e meus amigos, um grupo de adolescentes, jogávamos
bola num campinho de futebol da Tijuca, dentro do quartel da Polícia do
Exército, no Rio de Janeiro, onde funcionava o DOI-Codi. Ríamos,
comemorávamos os gols, gritávamos de farra, longe de imaginar os
pesadelos e as súplicas dos que passaram ou estavam presos ali. A vida
no bairro era pacata, os jornaleiros exibiam notícias amenas e revistas
pornográficas embaladas em sacos pretos. Na TV, muitos desenhos, novelas
da Globo, o Jornal Nacional e o programa Sílvio Santos. No Brasil não
havia racismo e acho que não existiam nem homossexuais. Melhor do que
isso, Deus era brasileiro.
Na ditadura, não precisávamos pensar sobre questões complexas, não
havia a necessidade de se discutir os direitos das minorias, direitos
humanos e muito menos novos formatos de família. Vivíamos num oásis
paradisíaco, sem conflitos sociais. Olhávamos com desdém o mundo
desabando e mantínhamos a certeza de que no Brasil o caos não existia. A
alienação era um narcótico poderoso, enxergávamos o país através de
lentes coloridas e o amávamos. “Ame-o ou deixe-o”, o problema é que quem
o deixava não embarcava para Miami.
Minha educação foi em colégio público; havia aulas de música e religião
católica. Nas aulas de religião, retiravam os alunos judeus da sala e
ficávamos sem entender o porquê disso. Hasteávamos a bandeira,
cantávamos o hino todas as manhãs e eu adorava as aulas de Moral e
Cívica. Tudo parecia luminoso e é assim que insiste em surgir na
memória. Talvez seja daí que brote a nostalgia desavisada. A alienação é
um vício capaz de causar dependência.
Não me surpreendo ao ver tanta gente clamando com saudade pelo retorno
da ditadura, é uma espécie de Síndrome de Estocolmo, o refém que se
afeiçoa pelo agressor. Afinal, nós vivíamos em Matrix e alguém nos
convenceu a acordar. Estenderam duas pílulas, a azul e a vermelha,
escolhemos a liberdade. Mas a cortina que escondia a sujeira não foi
logo devassada; abriram devagarinho, pouparam a informação. Foram
levantando o véu com a delicadeza dos que não sabem o que encontrarão
sob ele.
Liberdade é respeito ao outro
Não, Deus não é brasileiro, esse foi o primeiro relâmpago que
esbofeteou a minha inocência. Havia mais de um Deus, mais de uma
religião. Homossexuais existem, são vítimas de violência e quando se
casam não são reconhecidos como família. E o povo que recebe bolsa para
sobreviver? Só reparamos a presença dessa gente depois que o Lula os
resgatou da miséria absoluta. De repente, tantas questões para refletir,
tantas realidades para encarar… Agora, por exemplo, querem criminalizar
crianças, não querem salvá-las, educá-las. Decidiram que a solução é
prender.
No meio do cenário caótico da confluência das ideias e da exposição dos
preconceitos é que testemunhamos a solidez de uma boa democracia.
Porém, algo não mudou: a mídia. A imprensa continua descarada e
conservadora, dedicada a defender direitos corporativos, orientada pelo
dinheiro, alimentando desprezo pelas camadas menos favorecidas,
manipulando a política e avessa à imparcialidade. A imprensa, ao
contrário do que se diz, poucas vezes esteve a serviço das causas
relevantes.
Para o nosso bem, a liberdade de ponderar já provoca debates sobre a
qualidade da informação, uma discussão que ocorre em escala mundial.
Aqui, observamos a decadência dos jornais, demissões de jornalistas e
intolerância com opiniões. É a crise de um jornalismo tacanho, covarde e
medíocre. A grande imprensa brasileira é uma fábrica de
conservadorismo, uma escola de burrices. Lançam a bandeira de uma PEC
que reestabelece a exigência de diploma para jornalistas sem se dar
conta que o sucateamento da profissão vai muito além disso. É lamentável
conviver com a mídia desqualificada e anacrônica num momento tão lindo,
em que começamos a olhar para tudo o que ignorávamos. Mídia que ainda
parece acreditar que serve aos velhos generais.
Terminando de ler uma biografia de Carlos Castello Branco, aprendo que o
jornalista não é militante, arauto ou porta-voz. O jornalista é um
vigia habilitado com as qualificações básicas para descrever e analisar a
realidade em curso. Jornalismo é a vocação irreprimível dos que são
engajados com a verdade e defendem os valores democráticos. Ao despertar
do torpor da ditadura, compreendi logo que a liberdade é, antes de
tudo, o respeito ao outro, a aceitação do próximo, seja ele quem for.
Para quem não alcançou esse entendimento, não tenho dúvidas: a liberdade
oprime.
***
Alexandre Coslei é jornalista e escritor
Nenhum comentário:
Postar um comentário