A mídia e a cultura do silêncio
Escrito por: Emiliano José
Fonte: Blog do Miro
Fonte: Blog do Miro
Venício Lima é desses intelectuais raros. Não só pela erudição, como e
principalmente, pelo seu compromisso com as classes trabalhadoras, com a
democracia, com a liberdade. Com propriedade, pode ser qualificado, à
Gramsci, de intelectual orgânico. Seu mais recente livro – Cultura do
silêncio e democracia no Brasil: ensaios em defesa da liberdade de
expressão [1980-2015] – é uma expressão disso. Ao selecionar textos
básicos de sua produção entre 1980 e 2015, evidencia o quanto seu
pensamento contribuiu para a luta democrática no Brasil e o quanto suas
formulações têm lado.
Cientista social, mestre, doutor, pós-doutor em mais de uma ocasião,
especialista em História do Cristianismo Antigo, professor titular de
Ciência Política e Comunicação da Universidade de Brasília (aposentado),
foi pesquisador visitante I do CNPq no Departamento de Ciência Política
da Universidade Federal de Minas Gerais, professor visitante nas
universidades de Illinois e Miami-Ohio, EUA e La Habana, Cuba, e
coordenador de Pós-Graduação da Universidade Estadual do Rio Grande do
Sul, além de fundador e primeiro coordenador do Núcleo de Estudos sobre
Mídia e Política da UNB. É também jornalista profissional.
Seus ensaios têm matrizes claras. Primeiro, não conseguem esconder, e
nem pretendem, o acento marxista. Tal matriz evidencia-se no método de
análise, na clareza de que a história está fundada na luta de classes e
que nunca deve fugir da noção de totalidade, inclusive e principalmente
quando se analisa os meios de comunicação, que nunca podem ser vistos
isoladamente, à parte da sociedade, da economia, da cultura e da
política. Segundo, seus textos guardam um compromisso profundo com a
democracia em seu sentido mais substantivo. A democracia nele sempre
cobra participação popular, cidadania ativa, defesa dos conselhos,
autonomia do povo. E deve ser erigida sob um Estado de Direito capaz de
promover simultaneamente a igualdade e a diferença, características
essenciais da política, se transformadora.
Terceiro, essa concepção de democracia provavelmente decorre de outra
matriz – a gramsciana. Indaga-se se esta é decorrente de Marx, ou quem
sabe, ela própria é que o tenha levado a Marx. Sem aparecer constante e
explicitamente nesses textos, Gramsci está sempre a insinuar-se em suas
concepções democráticas e no próprio entendimento do processo de
transformação da sociedade, mais próximo da ideia de conquistas obtidas
trincheira por trincheira do que da concepção do assalto ao Palácio de
Inverno.
De Gramsci, é possível especular, pode ter se apropriado da noção de
casamatas, fortalezas protetoras das classes dominantes, especificamente
ao tratar da mídia, principal preocupação de sua trajetória intelectual
e desse conjunto de ensaios. O jornalismo como partido político
funda-se em análise de Gramsci lá pelos anos 20 do século passado. Esta
noção guarda impressionante atualidade, e seguramente está presente nos
textos de Venício Lima, sempre com os cuidados acadêmicos devidos, nunca
desprezados, jamais canonizados. Ele não escreve como se estivesse sob
os pórticos sagrados da Academia, mas como ator político envolvido com
as lutas de seu tempo.
Não creio em acaso na atitude de Venício de trazer à luz no segundo
capítulo um autor como Stuart Hall, nitidamente gramsciano, intérprete,
entre tantos, do notável conceito de hegemonia do dirigente comunista
italiano. E o recupera para o Brasil, se a palavra couber, no âmbito de
estudos jornalísticos. Ou Raymond Williams, que também trabalhou o
conceito de hegemonia, e acrescentou o de contra-hegemonia.
Não é equivocado acentuar também matriz fundada em Paulo Freire,
merecedor do primeiro capítulo e mais dois ensaios, sobre quem o autor
produziu uma tese, na University of Illinois, em 1979, qualificada pelo
próprio Freire como “um trabalho original, arguto, sério e profundo”, em
correspondência de próprio punho enviada pelo autor da Pedagogia do
Oprimido a Venício. O trabalho acadêmico foi transformado em livro sob o
título “Comunicação e Cultura: as ideias de Paulo Freire”. Resgata-se o
conceito da cultura do silêncio, de Freire, que tem origem remota no
padre Vieira e se consolida no quadro teórico da “teoria da
dependência”, em voga no início da segunda metade do século passado,
como acentua Lima.
A cultura do silêncio caracteriza a sociedade a que se nega a
comunicação e o diálogo, onde se respira o ambiente do tolhimento da
voz, da incomunicabilidade. Tudo a ver com as circunstâncias atuais,
quando um barulho ensurdecedor sobre alguns assuntos escolhidos a dedo
pela mídia hegemônica encobre outros tantos, condenados ao silêncio,
para além de sua óbvia noticiabilidade. Também é em Freire que Venício
busca inspiração para o desenvolvimento do conceito do direito à
comunicação, fundado na formulação freireana da comunicação dialógica.
Na defesa de Freire, insurge-se contra uma visão idealizada do
pensador-educador, como se fosse um ser simplesmente amoroso, incapaz de
compreender a violência como resposta dos dominados, “afirmação do ser
que já não teme a liberdade e que sabe que esta não é um presente, mas
uma conquista”, nas palavras de Freire, citadas por Venício.
O maior volume de ensaios gira em torno das políticas públicas de
comunicação, de mídia e política, e de liberdade de expressão, da
terceira à quinta Parte do livro. Quanto ao primeiro ponto, o autor
transita pelo que foi a batalha da comunicação da Constituinte, pelo
conflito entre o interesse privado e público, pelo princípio da
complementaridade, conselhos de comunicação social, pela dificuldade em
avançar na democratização da comunicação no País, pelas legislações da
Argentina, Inglaterra e União Europeia e pela discussão em torno do
monopólio. Com relação a tais temas Venício Lima é o mais arguto e denso
crítico de nossa trajetória elitista em relação aos meios de
comunicação, de nossas barreiras para construir um novo marco
regulatório e da falta de iniciativa do Estado brasileiro em romper o
oligopólio que controla a mídia desde sempre, além de fazer o
cotejamento com as experiências internacionais de regulação, o que só
reforça a sua crítica.
O autor prefere, aqui junto com Juarez Guimarães, pensar o desafio de
constituir um campo de pensamento no qual política e comunicação estão
umbilicalmente vinculados, não podendo ser vistas de modo isolado.
Assim, tal pensamento gira em torno da ideia de que há uma relação
fundante e incontornável entre política e comunicação, o que
naturalmente conflita com muitas escolas teóricas, que preferem examinar
política de um lado, comunicação de outro, como se isso fosse possível
em tempos de idade-mídia. Na Parte sobre Mídia e Política, recupera o
seu instigante conceito de Cenários de Representação da Política,
fundado no conceito gramsciano de hegemonia, incluindo contra-hegemonia,
voltado a esquadrinhar situações e eleições onde há o predomínio da
televisão. No mesmo capítulo, trata do coronelismo eletrônico de novo
tipo, evidenciando o quanto as rádios comunitárias, no período analisado
por ele, 1999-2005, estavam controladas por políticos.
Na última Parte, cinco ensaios debruçam-se sobre o tema da liberdade de
expressão. Desmontam a ideia de que a imprensa – jornais, revistas,
emissoras de rádio e televisão – possa ser mediadora dos debates de
interesses coletivos, possa garantir a formação de uma opinião pública
independente capaz de tomar as melhores decisões para toda a sociedade e
possa ser ainda expressão da realidade, da verdade. Até porque essa
imprensa, essa mídia é dominada por oligopólios nada propensos à
pluralidade de ideias, à liberdade para a sociedade, todos eles voltados
para seus próprios interesses e para assegurar a hegemonia das classes
dominantes. Constitui sempre o partido-mídia, tem lado, e é o dos
dominantes, invariavelmente.
Relativamente ao Brasil, o autor considera que, mantendo-se
hegemônicos, os oligopólios da comunicação têm conseguido interditar o
debate público amplo e integral sobre a democratização da mídia,
“condição necessária para a autodeterminação coletiva e razão última da
liberdade individual de expressão”. Na verdade, argumenta, tais meios
restringem a liberdade de expressão de pessoas e grupos, impedidos de
trazer ao debate público sua opinião e a diversidade de sua cultura. Por
tudo, defende deva o Brasil caminhar para o reconhecimento de um
direito à comunicação, democrático e republicano, tão fundamental quanto
os direitos à saúde, à educação, a quaisquer outros direitos
essenciais.
Único lamento, no livro, é a edição descuidada. Um autor como Venício
não merecia tal tratamento. Erros grosseiros de edição, que chegaram a
obrigar a publicar em separado o brilhante prefácio de Juarez Guimarães.
Imagino, espero que a Editora da Universidade de Brasília o premie com
nova edição, acompanhada com mais esmero na sua preparação. Por tudo,
ele merece esse prêmio.
Essa espécie de síntese de sua obra, presente neste livro, carrega o
simbolismo da chegada aos 70 anos, completados recentemente. Uma
trajetória rica, de um intelectual que soube sempre encarnar o espírito
de seu tempo, mudar com ele, sem perder de vista as raízes teóricas
fundantes de seu pensamento. Gramsci, em carta ao irmão Carlo, da
prisão, em 1927, definiu-se:
“Alguns me consideram um demônio, outros quase um santo. Não quero ser
mártir, nem herói. Acredito ser simplesmente um homem médio, que tem
suas convicções profundas e não as troca por nada deste mundo.”
É Venício.
* Emiliano José é jornalista e doutor em Comunicação e professor da UFBA (aposentado).
Nenhum comentário:
Postar um comentário