quarta-feira, 9 de julho de 2014

AINDA SOBRE A DITADURA...

Por que as Forças Armadas de hoje defendem a ditadura?
Por Roberto Amaral
Os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, respondendo a pedido de informações da Comissão Nacional da Verdade, declararam, em três relatórios, autônomos mas aparentemente escritos pelo mesmo redator, que não houve desvio de finalidade no uso de instalações militares durante a ditadura.
 Uma de duas: ou a declaração, pronunciamento oficial atendendo a pedido oficial de informações, é simplesmente cínica (portanto institucionalmente inaceitável), ou, pior ainda, é a aterradora confissão de que as torturas e os assassinatos não são considerados ‘desvio de finalidade’. Por uma razão muito simples: até as pedras do deserto sabem que houve tortura e assassinatos contra perseguidos políticos da ditadura. Torturas, assassinatos, ocultação de cadáveres levados a cabo em dependências do Exército, da Marinha e da Aeronáutica.
Para refrescar a memória dos desmemoriados, cito, entre dezenas, três sítios militares do Rio de Janeiro nos quais a tortura e o assassinato de presos campeou: a Ilha das Flores, a Base Aérea do Galeão e a Polícia do Exército, o famigerado quartel da rua Barão de Mesquita nº 425, na Tijuca. Neste, entre outros, sequestrado, espancado, torturado até o último vagido e, afinal, empalado, morreu, assim assassinado, o meu amigo Mário Alves de Sousa Vieira, dirigente do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário. Deixou de gemer no dia 17 de janeiro de 1970, ano da graça do tricampeonato e do ‘Pra frente Brasil’, do ‘milagre econômico’ e da regência do general Médici, o presidente luciferino que (dizia ele) descansava ao final do dia ouvindo as sempre boas notícias do Jornal Nacional da Rede Globo então (isto é muitos anos antes da autocrítica) a emissora oficial do regime.
Antígona moderna, Dilma Alves, a companheira de Mário, não teve o direito de enterrar o marido. Até hoje – passados 44 anos! –sua família e seus us amigos aguardam o corpo que lhes é devido.
Informo ao comandante da Aeronáutica que na Base Aérea do Galeão, no Rio de Janeiro, foi torturado e assassinado, entre outros mártires, o quase menino Stuart Angel; que sua companheira Sônia de Moraes, uma menina, foi torturada, estuprada e assassinada nas dependências do Exército brasileiro, precisamente na Polícia do Exercito da rua Barão de Mesquita. Confiando na leitura dos comandantes da Aeronáutica e do Exército, ou de seus assessores, ou de seus familiares, seus filhos e filhas e amigos, noras e genros e netos, transcrevo o depoimento de João Luís, pai de Sônia:
Para continuar dizendo, sem pejo, que não houve ‘desvio de finalidade’ os comandantes estão desafiados a provar que não houve os crimes denunciados, e feita a prova, não lhes sobrará outra alternativa senão processar por injúria, calúnia ou difamação seus denunciantes, entre os quais me incluo. Não o fazendo, estarão reconhecendo que não consideram a tortura e o assassinato ‘desvio de finalidade’, posto que houve sim tortura e assassinatos. 
A prática era conhecida pelas diversas linhas de comando, donde, por exemplo, a exoneração (por Geisel) do general comandante o II Exército, general Ednardo D’à vila Mello, após os assassinatos de Vladimir Herzog e Manoel Fiel Filho, nas dependências do Destacamento de Operações Internas-Comando de Informações do II Exército (Rua Tomás Carvalhal, 1030, Paraíso). 
A tortura foi, por certo tempo, uma política de Estado executada por militares encastelados nos infames DOI-CODIs, muitos dos quais – num antecipado desmentido dos ‘relatórios’ – têm vindo a público ppara relatar, à s vezes até com pormenores, o que fizeram naquela época de horror.
Os ‘relatórios’ dos comandantes, lamentavelmente aceitos pelo Ministro da Defesa, que os encaminhou à Comissão da Verdade, encerram uma tragédia: o fato de as Forças Armadas de hoje (que gostaríamos que nada tivessem com as do terrorismo de Estado de ontem) assumirem como tal a responsabilidade ética, histórica e jurídica pelos crimes cometidos pela ditadura, a que não serviram. Quando não os denunciam, quando não permitem sua apuração, quando simplesmente negam sua existência tapando o sol com uma peneira esgarçada, deles, dos crimes de tortura e assassinato, e fraude e ocultação de cadáver, e obstrução à Justiça, tornam-se coniventes e corresponsáveis.
Trata-se de erro grave, pernicioso para a consolidação democrática e a recuperação do papel constitucional das Forças Armadas.
Sabem os militares que podem contar, em seu benefício, com a leniência de nossos tempos; mas sabem igualmente que serão réus condenados pelo tribunal da História, que não conhece nem sursis nem apelação. Da pena moral não há recurso.
O dramático, acima de tudo, é que essa solidariedade é pronunciada pelos mais altos escalões das Forças Armadas, os três comandantes militares respaldados pelo ministro da Defesa (que tem uma biografia para zelar) há exatos 50 anos distantes do golpe militar, e há 30 anos do fim da ditadura. É sabido que os atuais comandantes, assim como a esmagadora maioria dos integrantes que serviram naqueles tempos de horror nada tiveram com os crimes cometidos. Nenhum oficial superior de hoje estava na ativa naquele então. Por que então essa solidariedade? Há nela um comprometimento ideológico ou se trata, apenas, de um equino ésprit du corps?
O vexame (tratemos assim os ‘relatórios’) nos revela o corpo inteiro do anacronismo ideológico de nossas Forças Armadas, imunes à s lições do tempo, à s lições do mundo e à s muitas lições de nossa própria experiência. O povo brasileiro aprendeu com a longa noite do terror, a tão duras penas vivida, o preço e o valor da democracia. 
Construímos de lá para cá um novo Estado, talvez um novo país, somos uma nova sociedade, mas, à falta de vontade política, ou força, ou condições objetivas, não nos foi dado conformar novas Forças Armadas, compatíveis com os novos tempos, ou seja, apartadas do passado. Como demonstram os últimos fatos, nossa oficialidade permanece com o cordão umbilical atado ao passado, ao seu pior passado.
A criação do Ministério da Defesa foi um ganho institucional, mas, lamentavelmente apenas isso. Não logrou derrubar as casamatas do corporativismo tacanho, nem a insularidade militar, nem o descompromisso do quartel com a vida real. A caserna continua pensando e agindo como ostra, fechada em si mesmo e principalmente limitada pela sua pobreza de visão. Míope, seu horizonte é curto.
A atualíssima e necessária e inadiável discussão em torno do papel reservado às Forças Armadas, e nelas com destaque a nova a formação de nossos (novos) oficiais, não é uma simples questão militar, isto é, reservada ao monólogo da caserna. Trata-se de desafio pertencente à sociedade brasileira e discuti-lo, indo ao seu cerne, o currículo das escolas de formação de oficiais, os regulamentos militares etc., é tarefa de todos nós, da imprensa, da academia, dos cientistas sociais, dos políticos e, finalmente, do Congresso.
Na medida em que, recusando-se a mirar o futuro, comprometem-se com um passado sombrio, ainda não totalmente desvelado, nossas atuais Forças Armadas se revelam despreparadas para o papel que lhes reserva a democracia. Aos homens de Estado – a quem cumpre ler o passado para construir o futuro, perseguindo o ideal desconhecido e impedindo a emergência do conhecido indesejável –,, cabe a tarefa, ingente e agônica, de realizar a reforma adiada.
O papel de avestruz jamais contribuiu para resolver problemas, e simplesmente negá-los é forma irresponsável de potencializar sua periculosidade. Urge, pois, que as Forças Armadas revejam seu papel naqueles tempos de horror, para que se reintegrem às forças que propugnam por um Brasil democrático, justo e soberano.
Fonte: Carta Capital 
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