quinta-feira, 9 de outubro de 2014

NOS TEMPOS DO GOVERNO TUCANO EM 2001.

Parecer sobre a alteração do art. 618 da CLT proposta pelo Governo Federal

Ulisses Riedel
"Entre o rico e o pobre,entre o forte e o fraco,é a lei que liberta,é a liberdade que escraviza"(Lacordaire -iluminista da Revolução Francesa).

Atendendo a solicitação da CUT Nacional, passo a opinar sobre a alteração do artigo 618 da Consolidação das Leis do Trabalho proposta pelo Governo Federal.

A questão é muito mais grave do que podem supor aqueles que analisem superficialmente a proposta governamental.

Não se trata de "mera" reformulação, onde seja dada maior valor à negociação coletiva como apresentado, mas de enorme retrocesso social, com afronta ao Estado de Direito.

O projeto, que é inconstitucional e injusto, carece de razoabilidade. Como admitir-se que os interesses privados possam se sobrepor ao interesse público, ainda mais quando em prejuízo daqueles a quem o Estado deveria proteger?

Inconstitucional porque afronta a Constituição Brasileira, que no art. 5º, do capítulo que cuida dos direitos e garantias individuais, garante que "todos são iguais perante a lei" e que "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei", e, no art. 7º, assegura aos trabalhadores um elenco de direitos, "além de outros que visem a melhoria de sua condição social", especialmente os reconhecidos em acordo ou convenção coletiva.

Parece fora de dúvida que a Constituição, ao estabelecer o respeito ao princípio da legalidade, garantir direitos básicos aos trabalhadores e reconhecer os acordos e convençóes como forma de acrescentar "outros direitos que visam a melhoria de sua condição social", está reforçando o princípio da proteção do hipossuficiente na relação capital/trabalho e, portanto, admitindo a autocomposição como uma nova fonte de direito e não como um meio de supressão de direitos dos trabalhadores.

Injusto porque amplia as possibilidades de transferência de renda do trabalho para o capital. Há apenas três formas de interferir na distribuição funcional da renda. Fenômenos naturais, decisões de governo e decisões de mercado. Como a primeira, em geral, é neutra. A segunda, pela proposta governamental, deixa de existir. Significa dizer que os trabalhadores, que são a parte mais fraca econômica, social e politicamente na relação com o empregador, dependerão exclusivamente do mercado, cuja finalidade última é o lucro.

Olhemos esta matéria sob outro enfoque: o da evolução da espécie humana, à luz do direito.

Se verificarmos a história da humanidade nos últimos três séculos, vamos constatar que houve avanços constantes. No século XVIII conquistamos os Direitos Civis; no XIX, os Direitos Políticos; e no século XX os Direitos Sociais.

Entretanto, no início do século XXI, em um país de profundas desigualdades sociais e por iniciativa de um governo que se proclama social democrata, propõe-se a extinção dos direitos sociais dos trabalhadores, inclusive os que constam da Constituição de 1988.

Mas o projeto não se limita a reduzir ou flexibilizar os direitos constitucionais que não sejam auto-aplicáveis e a maioria não é. Ele vai mais longe. Ele acaba com o Direito do Trabalho, conforme veremos a seguir.

O Direito do Trabalho está assente na existência de direitos mínimos e na liberdade de negociação para que outros sejam acrescidos. Essa espinha dorsal do Direito do Trabalho está consolidada no art. 444 da CLT, que prescreve:

"Art. 444. As relações contratuais de trabalho podem ser objeto de livre estipulação das partes interessadas em tudo quanto não contravenha às disposições de proteção ao trabalho, aos contratos coletivos que lhes sejam aplicáveis e às decisões das autoridades competentes".

É falso dizer que as leis tutelares impedem ou dificultam as relações entre o capital e o trabalho. Elas estabelecem apenas o mínimo e as partes são livres para fazer acordos "para cima", acrescentando direitos. A proposta governamental, na verdade, é no sentido de suprimir direitos. Querem que os trabalhadores façam acordos "para baixo", renunciando às garantias mínimas deferidas em lei.

Reitero que, segundo a legislação vigente, art. 444/CLT, é livre a negociação para acrescentar direitos e é proibida a negociação para suprimir direitos. É exatamente isso que querem alterar. Querem com um único golpe nocautear todos os direitos consolidados.

Assim, não é verdade que a negociação esteja sendo prejudicada pela legislação. Fica clara a intenção governamental: querem liberdade (?!) de negociação para suprimir direitos, com o discurso falso de facilitar as negociações.

O discurso de que não estarão suprimindo direitos, uma vez que dependeriam sempre da concordância dos trabalhadores, é totalmente falso.

Liberdade só existe entre iguais. Contra o poder absoluto dos empregadores, que detêm fundamentalmente o poder de demitir seus empregados, sem qualquer justificativa, a vontade do trabalhador, individual ou coletiva, é totalmente inexpressiva.

Já na Revolução Francesa, o grande mestre iluminista Lacordaire nos ensinava que "entre o rico e o pobre, entre o forte e o fraco, é a lei que liberta, é a liberdade que escraviza".

Efetivamente, no presente momento, qual o poder de negociação que detêm os trabalhadores diante do desemprego e do poder absoluto patronal de dispensa de empregados sem qualquer justificação?

É claro que existem empregadores que tratam os seus empregados com toda a correção, mas as leis que garantem direitos mínimos não são feitas para esses e sim para aqueles que exploram a classe trabalhadora.

A lógica da contratação coletiva defendida na proposta governamental é de que o lobo e o cordeiro podem estabelecer harmoniosamente as suas relações, de que as leis estão impedindo esse livre relacionamento.

É falso imaginar que o lobo se fez vegetariano e que os maus empregadores perderam sua fome por lucros fáceis, rápidos, desmedidos, a qualquer preço. Ora, sua gana está presente no trabalho escravo que sobrevive, no trabalho de menores nas piores condições imagináveis, no uso de todas as manobras para o aumento de preços, na rotatividade da mão-de-obra, na concentração da riqueza, no salário mínimo indecente, na miséria de milhões e milhões de trabalhadores. Vivemos sob a égide de um capitalismo selvagem, mas querem aumentar ainda mais a barbárie.

É importante lembrar que negociação sem direito efetivo de greve é outra falácia. A rigor não existe negociação coletiva no Brasil, mas submissão às imposições patronais. A única coisa que os trabalhadores têm efetivamente para negociar é a sua força de trabalho, mas as categorias pequenas não têm como socorrer-se do direito de greve e as categorias grandes, fortes, poderosas, são todas tipificadas como categorias essenciais e, portanto, submetidas a tais rigores que fica impossível a utilização desse recurso.

O presente momento nos dá uma visão clara da situação. Poucas são as categorias econômicas que concordaram em corrigir plenamente a inflação existente, sendo os trabalhadores submetidos a permanente redução salarial.

As normas trabalhistas representam o ESTADO DE DIREITO PARA OS TRABALHADORES, contra a liberdade selvagem aética de muitos empregadores. Querem, com um falso discurso de prevalência da negociação coletiva, a supressão do Direito do Trabalho como direito de ordem pública. As leis trabalhistas representam o ESTADO DE DIREITO PARA OS TRABALHADORES. Contra a liberdade selvagem, aética, foram estabelecidas regras garantindo direitos mínimos. A supressão da garantia desses direitos mínimos para que possam ocorrer "negociações" a menor aprofundará ainda mais a miséria da classe trabalhadora.

Assim, para concluir, não se trata de um mero projeto de ampliação da negociação coletiva, mas de uma profunda alteração no Direito do Trabalho, deixando de existir as garantias mínimas, inexpressivas.

A sua aprovação é o fim do Direito do Trabalho, é o fim do Estado de Direito para a classe trabalhadora, é a prevalência dos interesses privados aéticos, descaracterizando o Direito do Trabalho como direito de ordem pública.

Por todas estas razões e diante da insistência do governo em retirá-lo no Congresso, recomenda-se a rejeição do projeto e de seu substitutivo.

Ulisses Riedel é advogado e diretor técnico do DIAP.

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