quarta-feira, 19 de novembro de 2014

LIMA BARRETO.

 
03 novembro 2014por Publicado em:resenha7 comentários 
Poucos meses antes de sua morte aos quarenta e um anos de idade, em 1922, Lima Barreto reuniu em um só livro que denominou de “Bagatelas”, as principais matérias jornalísticas que refletiam sua visão da realidade brasileira. Nesse trabalho, estaremos resenhando seus principais artigos, ensaios e até mesmo panfletos, que nos fornecem um importante perfil da nossa sociedade nas primeiras três décadas republicanas do ponto de vista de um jornalista honesto e militante.
Lima Barreto enfrentou uma série de preconceitos: sua origem social (pobreza extremada), racial (mulato descendente de ex-escravos), alcoolismo, tendência familiar a distúrbios psíquicos, e, principalmente, por sua verve contestadora de jornalista independente. A todos os preconceitos enfrentou com a coragem e o desprendimento que lhe eram peculiares.
O Brasil dos anos vinte e a política na República Velha
Cotidianamente nos deparamos com leis que são feitas para não serem cumpridas. Pois Barreto tinha a mesma opinião há quase um século e denunciava que a Constituição da República Velha dizia no seu parágrafo 7, artigo 72: “Nenhum culto ou Igreja gozará de subvenção oficial, nem isenções de quaisquer espécies, nem terá relações de dependência ou alianças com o Governo da União ou dos Estados”. Até os dias de hoje, diversas Igrejas e Cultos recebem subvenções e isenções governamentais, proibidas desde aquela época, mas esquecidas por nosso “Estado Laico”.
A vida política na República Velha sempre esteve sob suas lupas investigadoras e o jornalismo foi sua maneira de denunciar distorções que ainda hoje buscamos modificar: “A República, mais que o antigo regime, acentuou o poder do dinheiro, sem freio moral de espécie alguma, e nunca os argentários do Brasil se fingiram mais religiosos que os de agora(…) Estes trinta anos de República têm mostrado mais que no Regime Imperial, além da incapacidade dos dirigentes para guiar a massa da população na direção de um relativo bem estar, a sua profunda desonestidade, os baixos ideais da política em presença de propinas, gorjetas ou lucros por superfaturamento (…) Fizeram crescer os desfalques com suas dilapidações aos cofres públicos; inventaram obras suntuárias nas cidades, custando elas o dobro, o triplo, ou o quádruplo, com o claro objetivo de endinheirar parentes e apaniguados políticos”.
Barreto tinha absoluta clareza sobre o papel do Estado numa sociedade de classes: “Tenho dito muitas vezes que o princípio geral a que obedece a política republicana é enriquecer cada vez mais os ricos e empobrecer cada vez mais os pobres.”“Os construtores, os empreiteiros de estradas de ferro, os arrendatários de concessões públicas estão ricos, mas as estradas de ferro virtualmente não existem, pois não preenchem a sua missão.”
Nosso país herdou os cartórios e tabeliães do tempo em que era uma Colônia de Portugal, mas que se perpetuaram pelos séculos. “Vivemos a época dos registros e dos tabeliães, mas é o tempo das maiores falsificações; é a época dos códigos, mas também a das maiores ladroagens; é a época das polícias aperfeiçoadas, apesar de ser também o tempo dos crimes monstruosos e impunes; é o tempo dos fiadores, endossantes etc., verificando-se nele os maiores calotes; é a época dos diplomas e das cartas, entretanto, sobretudo entre nós- é o tempo da mediocridade triunfante, da ignorância arrogante, escondida atrás de diplomas de saber.”
Sabemos o quanto a seca do nosso nordeste foi utilizada no passado como meio de enriquecimento dos coronéis dos sertões. Lima Barreto inúmeras vezes denunciou o desvio dos recursos públicos que fizeram as fortunas e o poder político dos coronéis. “Há anos criou-se na cidade do Rio de Janeiro uma Inspetoria contra a seca do nordeste. Mas as secas, sem abrandamento nos efeitos, continuam a devastar o desgraçado nordeste. O arcebispo do Ceará reportou que nos últimos anos mataram setenta mil pessoas e dois milhões de cabeças de gado. Onde estão os açudes pelos quais pagamos?”
A repressão política
O chefe de polícia da Capital do Brasil, no governo de W. Luiz era o Sr. Aurelino Leal, que se especializara em prender e espancar estudantes e trabalhadores. Quando todos calavam suas vozes, lá surgia a de Lima Barreto a denunciar as arbitrariedades da repressão. “O Sr. Aurelino anda arrebanhando para os seus cárceres, sob o pretexto de serem anarquistas e conspiradores, acusações que ele não baseia em documento algum, pretendendo atirá-los para Fernando de Noronha ou qualquer outro desterro…”
“A República admite a máxima liberdade de pensamento; e desde que o anarquista seja pego jogando bombas, dando tiros de revólver, perturbando a ordem, cai no domínio do Código Penal e o que a justiça tem em mãos já não é o anarquista, mas o desordeiro, o mau feitor, o qual deve ter um julgamento regular, em conformidade com as provas obtidas… e não como desejam fazer com os operários apreendidos em 18 de novembro, julgá-los sem direito à defesa e condená-los em segredo.” “Que não se repitam as cenas dantescas do “Satélite”, das deportações para os pantanais do Acre, dos tormentos das masmorras da ilha das Cobras e de outros fatos assaz republicanos.” ( vide nossa homenagem ao líder operário Domingos Passos, massacrado nessa onda repressiva http://proust.net.br/blog/?p=427).
Os reacionários da época criticavam as leis por serem muito liberais e os “pais” daqueles que hoje insistem com a criminalização de menores, também criticavam “os processos legais e humanos de julgar”, que eram tachados de protetores dos criminosos e dos inimigos da ordem social; “os deveres impostos pela solidariedade humana, os sentimentos de comiseração e piedade pelas dores dos outros e pelos oprimidos constituem aos olhos dos pensadores de artigos de fundo na imprensa, os últimos vestígios de uma filosofia sentimental e chorosa.” Os anseios autoritários sempre estiveram voltados para o cultivo “de um ideal novo de força, de ação, cheio de ambições, rico de instintos robustos da expansão e domínio… Pobre Brasil! É a rã querendo chegar a boi!” Nos dias em que vivemos, mal parece que um século de desenvolvimento humano tenha ocorrido em nossa Pátria!
As plutocracias e a necessidade imperiosa da reforma agrária
Lima Barreto introduziu em nosso jornalismo o termo plutocracia, principalmente em relação à oligarquia que ele mais odiava, a paulista: “Sinto que o seja para representar a calamitosa oligarquia paulista, a mais odiosa do Brasil, a mais feroz, pois não trepida em esmagar as suas barulhentas dissidências a macete, a pilões, como se castram ou se castravam touros valentes para serem depois mui mansos carros de boi”.
Quase profetizando as ditaduras cívico-militares que vitimizariam nosso país, ele diz: “Não são apenas os militares que aspiram à ditadura ou a exercem. São os argentários de todos os matizes, banqueiros, especuladores da bolsa, fabricantes de tecidos, etc., etc., que pouco a pouco a vão exercendo, coagindo, por essa ou aquela forma os poderes públicos a satisfazer todos os seus interesses, sem consultar o da população e os de seus operários e empregados…
“Temos que agir para que o poder público não se transforme em verdugo dos humildes e desprotegidos.”
Com que visão estratégica nosso Lima Barreto considerava, em 1918, que a reforma agrária era o nosso “Problema Vital”: “Precisamos combater o regime capitalista na agricultura, dividir a propriedade agrícola, dar a propriedade da terra ao que efetivamente nela trabalha e não ao doutor vagabundo e parasita que vive na Casa Grande ou no Rio ou São Paulo.”
Os costumes nos anos vinte
Lima Barreto estava pelo menos meio século adiante de seu tempo no que tange ao casamento e à sua dissolução: “Eu sou por todas as formas de casamento; não me repugna admitir a poligamia ou a poliandria, mas se fosse governo manteria a monogamia como a forma legal de matrimônio, mas suprimiria toda essa palhaçada de pretoria e juizado de paz… O divórcio seria completo e podia ser requerido por um dos cônjuges e sempre decretado, mesmo que o motivo alegado fosse o amor de um deles por um terceiro.”
“A vida do homem e o progresso da humanidade pedem mais do que dinheiro e consumo… pedem sonho, pedem arte, pedem cultura, pedem caridade, piedade, pedem amor, felicidade; e esta, a não ser que se seja um burguês burro e intoxicado pela ganância, ninguém pode ter, quando se vê cercado da fome, da dor, da moléstia, da miséria de quase toda uma grande população”.
Foi Barreto um dos primeiros combatentes na árdua batalha em defesa das mulheres, perante uma sociedade rigorosamente machista. “Uma das sobrevivências nefastas dessa ideia medieval, aplicada nas relações sexuais entre marido e mulher, é a tácita autorização que a sociedade dá ao marido de assassinar a esposa, quando adúltera. No Brasil, é fatal a sua absolvição pelo júri.”
Os Estados Unidos e as Américas
Lima Barreto foi o único jornalista de expressão a desnudar com clareza a democracia americana nos anos vinte. “Nós brasileiros temos muito poucas informações do que é a política dentro dos Estados Unidos… A política lá é negócio e os representantes políticos da nação, se não são homens de negócio, representam tais homens. Uma eleição custa fortunas e só os sindicatos argentários podem pagá-las”.
Também denunciou a possessão branca que os Estados Unidos estabeleceram na América Central. “Vimos como a América do Norte promoveu traiçoeiramente a guerra com a Espanha; vimos como ela a derrotou; vimos como se apoderou de Porto Rico e das Filipinas e estamos vendo o que é a independência de Cuba! E o Havaí?” “Os Estados Unidos se opuseram oficialmente, durante muito tempo que a Espanha fizesse a emancipação da escravidão negra em Cuba.”
E com que clareza, sem jamais haver saído do Brasil, ele reproduziu o sentimento ianque em relação ao nosso povo e a todos os demais povos: “Os Estados Unidos têm por todos nós um desprezo rancoroso e humilhante; quando falam em liberdade, paz e outras coisas bonitas, é porque premeditam a ladroagem ou opressão.” “O fundo do espírito americano é a brutalidade, o monstruoso, o arqui-gigantesco. Ele não tem o sentimento de proporções que toda a criatura humana deve guardar com o próprio homem. Desde que não sintamos essas proporções; desde que não possamos perceber uma relação oculta conosco e com as forças normais, não sei como se pode achar beleza num monumento, edifício, enfim, de uma civilização; e o sentimento que ela possa inspirar será o de esmagamento e de opressão, sensações muito opostas à de beleza que é suave e macia.”
A respeito da guerra do México, diz Eduardo Prado, na“Ilusão Americana”: “A má fé do governo de Washington começou com a questão do Texas. Fomentou tanto quanto pode a revolta daquele território, animando-o a separar-se do México, para mais depressa absorvê-lo e declarou guerra ao México, verdadeira guerra de conquista, humilhou aquela república até o extremo e arrebatou-lhe a metade de seu território.”
Lima Barreto complementa o intelectual Eduardo Prado: “O que Prado não diz é que os estados escravagistas do sul dos Estados Unidos, temendo perder a maioria que tinham no Senado americano, fomentaram a insurreição no Texas, que com a anexação propiciaram senadores perfeitamente escravocratas. A escravidão que há muito havia sido abolida no México foi restabelecida em todo o território anexado… Eles são capazes de tudo!”
Lima Barreto denunciou também os “Cavalheiros da Liberdade”, organização precursora da “Ku Klux Klan”, como “a primeira das grandes companhias de bandidos que se alugam a industriais e capitalistas para reprimir greves operárias, enforcar e torturar ativistas. A segunda, denominada Pinkerton, já se tornou famosa em todo o mundo e começa a exportar sua mão de obra.”
A Academia Brasileira de Letras
Lima Barreto, o criador genial de “Policarpo Quaresma”, de “Clara dos Anjos” e de “Cemitério dos Vivos”, foi candidato à Academia Brasileira de Letras. Ele teve tão somente um único voto! Para a vaga a que concorreu foi eleito o médico Miguel Couto. “A Academia Brasileira de Letras, onde era de se esperar houvesse mais independência espiritual, só elegeu os Senhores Osvaldo Cruz, Miguel Couto e Aluísio de Castro, seus imortais membros, todos eles médicos e que nada têm a ver com as letras, apenas porque eram doutores”.
“Acontece que a Academia é o cemitério das letras e dos literatos. Os que estão lá não passam de cadáveres bem embalsamados.”
Leia mais sobre: “Lima Barreto, jornalista e escritor do povo brasileiro”, em http://proust.net.br/blog/?p=604  

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