quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Somos todos guarani-kaiowá

 
“O Estado não pode mais ser conivente com o extermínio velado dos guarani”, por Mariana Boujikian Felippe, especial para o Viomundo
Ao chegar à aldeia de Guaiviry, em Mato Grosso do Sul (MS), fui recebida por um pequeno grupo de crianças indígenas. Descalças, com os pezinhos cobertos de terra e as caras pintadas, elas dançavam de mãos dadas, e entoavam juntas uma canção de boas-vindas. Penduradas em cada uma delas, placas com os dizeres “Nós quero educação já/ Nós quero demarcação já/Pelo amor de deus parem o massacre contra os povos indígenas guarani”. As crianças guarani-kaiowá fazem parte de uma das maiores etnias do Brasil, e aprendem desde pequenas que precisam lutar para serem reconhecidas como cidadãs e terem seus direitos mais básicos respeitados. As placas eram sua forma de protesto, e representavam a voz de jovens brasileiros que parecem ter sido esquecidos há anos pelo seu próprio país.
Desde o seu descobrimento, o país adotou a prática do extermínio destes povos que cometeram um único crime: o de mostrar que é possível viver de uma maneira diferente. Para os guarani-kaiowá, a luta pela terra também é uma forma de resistência ao modo de vida do homem branco. Na sua língua, as terras tradicionais são chamadas de “tekoha”, palavra que vem de “teko” (modo de ser) + “ha” (lugar), o que poderia ser traduzido como “lugar onde se pode viver do nosso próprio jeito”. Para eles, os tekoha são lugares sagrados, onde é possível entrar em contato com os espíritos da terra e exercer sua própria cultura.
A guerra contra os índios de MS escancarou-se na década de 1940, quando começou o processo de colonização da região, com incentivo do governo federal. Os índios foram expulsos de suas terras, e forçados a se concentrar em oito pequenas reservas. Atualmente, os guarani-kaiowá estão confinados em cerca de 45 mil hectares, o que equivale a menos de 1% de seu território original. Onde antes estavam seus tekoha, agora há o mar de soja, cana-de-açúcar e pastos de boi. Os territórios sagrados deram lugar à produção desenfreada de commodities, que levarão o Brasil ao rol das novas potências econômicas.
A reação ao confinamento logo veio, ganhou força nos anos 1980, e vem retomando pequenas porções de terra desde então. Em sua luta, o movimento indígena enfrenta a força dos grandes proprietários de terra e do agronegócio. Hoje, MS abriga a segunda maior população indígena do país, mas é um Estado onde a lei pertence aos fazendeiros. Em agosto desse ano, Luis Carlos da Silva Vieira, proprietário do munícipio de Paranhos, declarou abertamente a um site de notícias: “Esses índios aí, alguns perigam sobrar. O que não sobrar, nós vamos dar para os porcos comerem”.
Infelizmente, a violência não se restringe ao discurso dos fazendeiros locais: neste último setembro, pistoleiros dispararam por horas contra os índios que participavam pacificamente de uma das retomadas, neste mesmo município. Pesquisas mostraram que, de 2003 a 2010, foram assassinados mais indígenas em MS do que em todo o resto do país. Grandes líderes vêm sendo perseguidos, ameaçados, e até mortos, como ocorreu com Nisio Gomes no ano passado. A impunidade dos mandantes se perpetua, e a terra continua sendo manchada de sangue.
Com restritas áreas para desenvolver suas práticas culturais e realizar plantio e caça, muitas aldeias passaram a depender de cestas básicas do governo para sobreviver. A consequência é um alto índice de morte por desnutrição infantil. Algumas comunidades buscam sustento trabalhando nos canaviais, conhecidos pelas suas condições trabalhistas precárias. Diante desse quadro, não é difícil entender porque o número de suicídios entre jovens indígenas é quatro vezes maior do que entre jovens do resto do país.
A Constituição Federal prevê que todos os territórios tradicionais deveriam ter sido demarcados até 1993, mas até agora, apenas 1/3 das terras foi demarcado. A luta pela demarcação de terras esbarra na lentidão do Judiciário em julgar processos pendentes, e no descaso do Executivo em homologá-las.
Para que possamos chamar este país de democrático, é essencial que haja o reconhecimento do direito desses povos aos seus territórios. As terras precisam ser devolvidas aos seus ocupantes originais, para que o Brasil seja de fato “um país de todos”. O Estado não pode mais ser conivente com o extermínio velado dessas populações. É preciso que cada cidadão divulgue essa causa, que é de todos os brasileiros. O rosto de cada criança indígena que implora pelo fim do genocídio contra seu povo é a face de um Brasil indigno e desumano. É preciso que as vozes das crianças de Guaiviry e de todas as outras comunidades reverberem e sejam ouvidas. É preciso que se faça justiça, pois os povos indígenas não podem esperar mais.
 
Mariana Boujikian Felippe é estudante de Ciências Sociais da USP.
Fonte: apn.org.br

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