sexta-feira, 26 de abril de 2019

UMA HISTÓRIA DE CRIMES...

O que são e como atuam as milícias do Rio de Janeiro André Cabette Fábio 10 Abr 2018 (atualizado 19/Dez 14h28) No sábado, 159 pessoas foram presas, suspeitas de integrarem a Liga da Justiça, a maior milícia do estado FOTO: POLÍCIA CIVIL/DIVULGAÇÃO PESSOAS PRESAS SOB FLAGRANTE PELA POLÍCIA CIVIL   Nas últimas semanas, uma série de ações policiais tem colocado sob os holofotes a atuação das milícias que, assim como facções, impõem um poder paralelo com uso da violência no Rio de Janeiro. O estado se encontra sob intervenção federal na área de segurança. Na madrugada de sábado (7), a Polícia Civil realizou uma ação em uma festa que reuniu 400 pessoas em um sítio alugado em Santa Cruz, na zona oeste do município do Rio. Quatro pessoas foram mortas após troca de tiros de cerca de meia hora, na qual granadas foram atiradas contra a polícia. Após a triagem dos frequentadores da festa, 159 pessoas foram presas sob flagrante. Segundo o jornal Folha de S. Paulo, a Polícia Civil suspeita que eles sejam membros da maior milícia do estado, a Liga da Justiça. Na ação, Wellington da Silva Braga, o “Ecko”, ou “Didi”, conseguiu fugir. Ele é apontado como líder do grupo, que atua na zona oeste do Rio, em municípios da Baixada Fluminense e da Costa Verde. Polícia Militar, Bombeiros, Exército e Aeronáutica Como outras milícias, a Liga da Justiça tem entre seus quadros membros de forças de segurança, como policiais e bombeiros militares, que abrem canais de influência sobre o Estado. Segundo o jornal O Globo, foi encontrada na ação de sábado a carteira funcional de um soldado de uma Unidade de Polícia Pacificadora da Polícia Militar. E outra de um sargento do 27º Batalhão da Polícia Militar, sua carteira de motorista, e um certificado de registro de arma de fogo em seu nome. A suspeita da Polícia Civil é de que os policiais sejam seguranças de Ecko. Foram encontradas também cinco fardas da Polícia Militar, um colete balístico com emblema da instituição e um boné com o símbolo da Polícia Civil. Dois soldados do Exército, um militar da Aeronáutica e um bombeiro suspeitos de participar da Liga foram presos. Os nomes não foram revelados. Também foram apreendidos 11 carros roubados, 24 armas, 76 carregadores de armas e 1.265 munições. Milícias crescem e diversificam atuação criminosa Em um trabalho de 2007 intitulado “Favelas sob controle das milícias no Rio de Janeiro”, as pesquisadoras Alba Zaluar e Isabel Siqueira Conceição afirmam que as milícias têm semelhanças com os grupos de extermínio que também eram formados por policiais desde os anos 1960 no estado. Mas se diferenciam destes porque exercem um controle militar mais profundo sobre as comunidades pobres que dominam. 88 Comunidades são controladas atualmente por milícias no Rio de Janeiro, segundo levantamento do Ministério Público estadual citado por O Globo. Em 2010, esses grupos controlavam 41 comunidades As milícias extorquem as populações desses locais, das quais cobram por suposta segurança, comissões ilegais sobre venda de botijões de gás, água, TV a cabo ilegal, ou “gatonet”, e transporte. Esses grupos também estão envolvidos na grilagem de terras de reservas ambientais pertencentes à União, extração de pedra e saibro nessas áreas, venda das terras com registro legal, venda de material de construção, e construção de imóveis. Milícias também atuam em casos de furto de petróleo cru que passa pelas tubulações da Petrobras após extração na costa do Rio de Janeiro, e na comercialização de mercadorias ilegais. Em 2008, a CPI das milícias da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro indiciou 226 pessoas por envolvimento nesses grupos, entre elas deputados estaduais e vereadores. Segundo O Globo, um inquérito aberto em março de 2018 pela Delegacia de Repressão às Ações Criminosas investiga se uma ação de despejo que usou máquinas para derrubar imóveis no condomínio Village Atlanta, em Santa Cruz, teria sido realizada por milicianos interessados nos imóveis. A ação contou com pessoas vestindo uniformes da Comlurb (Companhia Municipal de Limpeza Urbana) e da Defesa Civil, mas não foi autorizada pela prefeitura. Uma linha de investigação liga caso Marielle às milícias A vereadora Marielle Franco (PSOL) foi assassinada no dia 14 de março no centro do Rio de Janeiro junto a Anderson Pedro Gomes, motorista do carro onde estava. Mas, até agora, a Polícia Civil não apontou suspeitos. Uma das linhas de investigação é de que a violência seria resposta ao apoio que a vereadora dava a um coletivo de mulheres que debatiam um projeto da prefeitura para verticalização da comunidade de Rio das Pedras, na zona oeste do Rio de Janeiro. Em seu trabalho de 2007, Zaluar e Conceição apontam que, na década de 1990, Rio das Pedras foi uma das primeiras comunidades do Rio de Janeiro com atuação de um grupo com moldes de milícia, comandado então pelo inspetor da Polícia Civil Félix Tostes. Ele foi assassinado em 2008, pouco após ser afastado da instituição. Segundo O Globo, os comandantes atuais da milícia local não viam com bons olhos a perspectiva de desapropriação de imóveis seus para realizar obras de saneamento básico. Os planos foram abandonados pela prefeitura. No domingo (8), o líder comunitário da Taquara, bairro da zona Oeste do Rio, Carlos Alexandre Pereira Maria, ou “Alexandre Cabeça”, foi executado aos 37 anos. Seu corpo foi encontrado em um carro em Jacarepaguá, um daqueles em que fica Rio das Pedras. Ele é suspeito de ligação com uma milícia, e era colaborador do vereador Marcello Siciliano (PHS), ouvido na semana passada pelos policiais civis que conduzem o inquérito sobre o assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes. Segundo o jornal Extra, Siciliano também foi citado em um relatório da Secretaria de Segurança sobre a influência de milicianos nas eleições de 2014. Agora, a morte de Gomes e sua ligação com Siciliano e possível ligação com milicianos está sendo investigada pela mesma equipe responsável pelo caso de Marielle e Anderson. O Nexo conversou com dois pesquisadores para entender melhor o que são as milícias, e qual seu papel no Rio de Janeiro. Thais Duarte é pós-doutoranda da Universidade Federal de Minas Gerais. Ela é autora, em parceria com Ignácio Cano, do livro “‘No Sapatinho’: A evolução das milícias no Rio de Janeiro (2008-2011)”, lançado em 2012 pelo Laboratório de Estudos da Violência da Universidade Federal do Rio de Janeiro José Cláudio Souza Alves é sociólogo e professor da UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro). Ele é autor do livro “Dos Barões ao Extermínio: uma história da violência na Baixada Fluminense”, publicado em 2013. O que são milícias? Em que elas diferem das facções e outros grupos criminosos? JOSÉ CLÁUDIO SOUZA ALVES O tráfico de drogas se fortalece no final dos anos 1970.  A milícia é mais recente e com uma estrutura mais por dentro do poder do Estado. Traficantes são [tratados como] facínoras, presos ou mortos. Milicianos não, não há investigação deles por conta dessa penetração e dos interesses econômicos que passam a ser movimentados. Entre 1995 e 2000 há um protótipo das milícias. Elas ainda estão se formando, associadas a ocupações de terras urbanas pela população empobrecida, sem acesso à habitação, sem apoio de políticas públicas e sociais, sem luz, água, transporte e com necessidade de garantir a sobrevivência na zona oeste do Rio e na Baixada Fluminense. Eu vejo nos esquadrões da morte elementos muito similares às milícias. Eles passam a se estruturar com forte presença de policiais militares, civis, bombeiros, mas com menos organização. Há um jogo político de atuação e controle nessas áreas, e lideranças emergindo, algumas delas eleitas, mas sem o perfil do que vai se formar. A partir de 2000 há um fortalecimento determinante em [a comunidade] Rio das Pedras, em [o bairro de] Jacarepaguá. Inicialmente, a milícia é tomada como uma medida de autodefesa cidadã, e defendida por figuras como [o ex-prefeito] César Maia, que dava certo apoio à prática em blogs ligados a ele. Em seguida isso foi sendo desmontado, com a percepção de como esses grupos atuavam. Houve o sequestro e a prisão em cativeiro de jornalistas de [o jornal] O Dia, que faziam matérias sobre as milícias em uma favela chamada Batam, na zona oeste. Eles estão associados a agentes de segurança do estado e começam a se projetar politicamente. Em 2008 houve a CPI das milícias, com [protagonismo de] Marcelo Freixo [PSOL]. 287 indivíduos, entre eles parlamentares, deputados estaduais, são denunciados. A partir daí as milícias têm uma atuação mais silenciosa, menos ostensiva. Mas elas nunca deixaram de crescer. THAIS DUARTE As características da milícia podem ser resumidas em cinco traços centrais: Domínio territorial e populacional de áreas por parte de grupos armados irregulares. Coação, em alguma medida, contra os moradores e os comerciantes. Motivação de lucro individual como elemento central, para além das justificativas retóricas oferecidas. Discurso de legitimação relativo à libertação do tráfico e à instauração de uma ordem protetora. Diferentemente do tráfico, por exemplo, que se impõe simplesmente pela violência, as milícias pretendiam se apresentar como uma alternativa positiva. Participação pública de agentes armados do Estado em posições de comando. O narcotráfico coincide plenamente nos três primeiros elementos e se diferencia das milícias basicamente por três motivos: a) não pretende se legitimar pela instauração de uma ordem protetora, muito embora ele também exerça uma função normativa nas comunidades; b) diferentemente das milícias, ele interioriza o seu papel como socialmente desviado e como questionável no terreno moral;  c) a participação de agentes públicos no tráfico é secundária e relativamente sigilosa, enquanto que a identidade das milícias está construída em torno do pertencimento dos seus membros às corporações de segurança pública. Qual é o poder das milícias no Rio de Janeiro? JOSÉ CLÁUDIO DE SOUZA ALVES Quando falo crime organizado, falo de uma estrutura de poder econômico, político e cultural que favorece grupos que se fortalecem com controle militarizado de áreas. Esses grupos começam a oferecer proteção, cobrando por isso. Avançam na oferta de serviços urbanos, gás, água, TV a cabo clandestina, venda de terrenos. Articulam várias formas de ganhos [financeiros] e estruturas de poder. Hoje as milícias têm lixões clandestinos, vendem terrenos e terras da União, com uma estrutura cartorial forte, têm máfias de roubo de combustível de oleodutos da Petrobras, têm assentos em secretarias municipais na Baixada e força parlamentar, com vereadores e deputados. Eles influenciam a lógica política e fazem alianças com grupos econômicos que se valem deles para garantir segurança e proteção. Essa estrutura só existe pela presença direta dos agentes de segurança do aparato policial, que fazem parte dessa estrutura e favorecem determinados grupos. Eles praticam o “arrego”, o suborno, fornecem armas e montam esquemas dentro da estrutura do estado. As UPPs nunca atuaram em áreas da milícia, mas em áreas com venda de drogas e controle de facções, como o Comando Vermelho, e favoreceram uma reconfiguração da geopolítica do crime no Rio de Janeiro. Áreas de fora do Rio de Janeiro compensam a perda das áreas de UPPs onde se vendiam drogas; a Baixada é uma delas. O [aumento do] número de mortes está associado à disputa dessas áreas de fronteiras do crime organizado. THAIS DUARTE De acordo com uma pesquisa publicada em 2012, realizada pelo Laboratório de Análise da Violência da UERJ (LAV/UERJ), as milícias têm forte poder em determinados territórios do estado do Rio de Janeiro, sobretudo, os localizados em áreas de periferias. Controlam, assim, serviços, como a TV a cabo e a distribuição de botijões de gás, bem como cobram taxa a moradores e comerciantes, sob a justificativa de garantir uma “segurança” em relação a outros criminosos, como assaltantes e traficantes. Uma diferença da ação de milicianos em relação a outros tipos de criminosos é a sua capacidade de infiltração nos quadros do Estado. Não à toa, as milícias são formadas, sobretudo, por agentes de segurança pública, o que lhes garante boa capacidade de interlocução com atores públicos, abrindo margem à corrupção, bem como maior conhecimento do funcionamento do Estado, dificultando a desarticulação de seus grupos. Para além de estarem inseridos no aparato de segurança do Estado, há milicianos presentes em outras instâncias, como o parlamento, por exemplo. Durante e logo após a CPI das Milícias em 2008, alguns vereadores e deputados foram presos por envolvimento com esses grupos. De fato, sob a aura de uma pretensa representatividade em relação às comunidades das quais fazem parte, os milicianos se candidatam a cargos no Legislativo e, assim, garantem maior estabilidade, poder e legitimidade no controle das milícias locais. Isso é um ponto para ser observado em relação às eleições de 2018.   Milícias têm ligações com quadros das polícias. Isso é um argumento a favor da intervenção federal na segurança no RJ? JOSÉ CLÁUDIO SOUZA ALVES Da forma como ocorre, a intervenção diz que a Segurança Pública do Rio é parceira e aliada. Mas eles são os principais responsáveis pela estrutura das milícias. Não tenho a menor ideia de como intervir nesse quadro quando os trata como parceiros e aliados. Você não atua sobre os milicianos sem atacar a sustentação econômica e política que eles têm, com representantes em estruturas do Executivo e Legislativo fazendo negociações dentro do Estado. Enquanto puderem vender terras onde Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária] e Secretaria de Patrimônio da União não fiscalizam, e enquanto o Ministério Público não fizer ações contundentes, eles vão continuar ganhando dinheiro. Enquanto comerciantes e moradores que se recusarem a pagar segurança forem assassinados, eles vão continuar atuando. Enquanto o Detran [Departamento de Trânsito do Estado] não agir contra o poder deles sobre o transporte clandestino, enquanto a distribuição de água e gás continuar sob o monopólio deles, eles vão continuar atuando. Essa prisão de 159 pessoas não expressa uma mudança significativa desse cenário, que tem dimensões mais profundas e amplas. É preciso uma nova fase da intervenção, que por enquanto tem se pautado pelo controle de populações pobres em áreas pobres, como se o controle do tráfico de drogas fosse o único problema da segurança pública. THAIS DUARTE A intervenção federal militar não se justifica sob qualquer argumento, muito menos por as milícias apresentarem quadros na polícia. Há capitais no país, como as nordestinas, muito mais violentas em relação ao Rio de Janeiro, conforme disposto, por exemplo, pelo último Mapa da Violência. Estes locais talvez merecessem uma atenção mais acurada do governo federal, mas sem sofrer intervenções militarizadas. Em ações de segurança pública, deveriam ser priorizadas medidas de inteligência e prevenção à criminalidade, mudando o foco atual, cuja base é a repressão violenta, sobretudo, do traficante de drogas. A guerra às drogas é o cerne das atividades de segurança pública executadas no país, em específico, no Rio de Janeiro. Ensejam, ainda, fortes preocupações o fato de forças de segurança nacional, como o Exército, realizarem ações de segurança pública, havendo vozes, inclusive, que indicam para a inconstitucionalidade de tal medida. De fato, o Brasil já presenciou momentos em que as forças armadas realizaram tarefas de segurança pública. Na Ditadura Civil Militar, as ações de segurança pública eram embebidas na doutrina de segurança nacional, resultando em inúmeros casos de tortura, desaparecimentos forçados e mortes. Também com o lema da “lei e da ordem”, no Rio 92, nos Jogos Pan-americanos de 2007 e no período dos eventos esportivos de 2014 e 2016, o Exército ocupou favelas do Rio de Janeiro, a partir de uma articulação entre o governo federal e estadual. Com isso, no Complexo do Alemão, por exemplo, o Exército estava liberado pela Justiça a realizar busca e apreensão nas casas, bem como a ocupá-las. Ainda, poderia fazer investigações sobre o tráfico, fazer bloqueios de acesso pela favela e realizar prisões. O efeito disso foi um acirramento da violência em favelas do Rio de Janeiro, tendo sido comuns relatos de atos truculentos e uso abusivo da força contra moradores. Em suma, a intervenção federal militar é injustificável. E, por sua vez, a principal forma de desarticular as milícias é sufocar sua capacidade de geração de renda. EXPRESSO Qual a lógica operacional da intervenção federal no Rio 

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